A velha saiu de casa num passo apressado. Um caminhar bem mais acelerado que a sua idade, com certeza bastante avançada, devia permitir.
Um lenço negro cobria-lhe a cabeça, usava-o talvez por tradição, ou talvez numa tentativa inútil de esconder as rugas carregadas que lhe adornavam o rosto (ou deformavam). Quem sabe qual seria o seu ideal de beleza? Certamente fora criada num tempo (já esquecido) em que a beldade importava pouco, em detrimento da robustez física. Assim parecia ser.
De resto, umas vestes negras, já gastas pelo tempo a julgar pelos remendos, cobriam-lhe as costas vergadas pelo peso dos anos. Pela aparência só poderíamos imaginar o seu corpo decrepito e deformado pela velhice.
Irrompeu pelas ruas da cidade decidida, sem medo. Como um espectro de outros tempos, avançava determinada entre rostos, prédios, veículos e o caos da modernidade. Parecia saber onde queria ir, ou quem sabe a demência dava-lhe essa ilusão.
Muitos eram os que a olhavam. Alguns faziam-no com repulsa perante aquela figura grotesca e sinistra que se desfasava da multidão.
Outros viravam os olhos para o outro lado. Alguém assim não tinha lugar na urbe, onde reina a perfeição, por isso ignoravam e seguiam o seu caminho, esquecendo as fracções de segundo em que se cruzaram com tal personagem.
Alguns, no entanto, dotados de gentileza (felizmente esta ainda existe), perguntavam à estranha senhora idosa se necessitava de ajuda. Mas ela, por orgulho, vergonha, ou outro desígnio qualquer, baixava a cabeça e não respondia. Continuava a sua caminhada cabisbaixa e silenciosa.
Um menino, quase adolescente, dava chutos numa bola, imaginando na sua cabeça que era um jogador de futebol famoso, aplaudido pelo mundo. O seu devaneio foi interrompido pelos passos apressados daquele vulto coberto de negro.
Lembrou-se que os seus pais contavam que antes de viverem na cidade, haviam crescido numa aldeia perdida nos montes, já esquecida no tempo. Diziam que os jovens fugiram todos da existência áspera do campo, em busca de conforto e para trás só ficaram os velhos que nada mais sabiam da vida, a não ser a rotina do deitar cedo e cedo erguer e para si não desejavam mais nada. Por isso ficaram, remetidos ao abandono. Comentavam que as rugas dessa gente eram mais fundas, ríspidas e assustadoras.
Com essa imagem na cabeça e curioso por alguém assim com uma aparência tão deslocada palmilhar aquelas ruas agitadas, decidiu segui-la. Reparou que no seu regaço segurava afincadamente uma trouxa de pano. “Que seria que levava lá dentro”? Inquiriu a criança que manteve sorrateiramente a perseguição à senhora que teimava em não abrandar.
Com uma agilidade quase sobrenatural para um ser humano (quanto mais uma idosa) e um ritmo alucinante, ela esgueirava-se entre a multidão com extrema facilidade, o que dificultava bastante a tarefa do menino. Mas ele não desistia e manteve-se no seu encalço. Por vezes tinha de saltar entre as pessoas para tentar avistar onde estava aquele lenço negro. Tarefa que se mostrava cada vez mais difícil.
Não tardou a que a perdesse de vista entre as várias esquinas. Ainda correu de um lado ara o outro para lhe tentar encontrar o rasto sem sucesso. Aquela estranha figura coberta de negro, tal como um fantasma, dissipou-se entre o mar de rostos que iam e vinham ao som da hora de ponta.
Resignado por não ter descoberto o destino daquela velhota de rosto encorrilhado, segurou a sua bola e regressou à sua fantasia de jogador de futebol. Mais tarde, ao jantar, iria contar aos pais aquela pequena aventura. Quem sabe se eles conheciam o segredo daquela velha senhora…
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