domingo, setembro 29, 2019

Preso ao nome que me deram


Quando era pequeno não sentia frio nem calor. Fossem os dias tórridos ou gélidos. Tudo que queria era brincar! A energia começava de manhã e só terminava à noite, onde, por força dos adultos, tinha de ir dormir, sem ter noção de que estava cansado. Por isso adormecia tão rápido, na exaustão da qual não tinha consciência. Aproveitava, no entanto, esse tempo, para fantasiar com as aventuras do dia seguinte.
Nessa altura, que sabia eu de corações partidos? Não imaginava que a mágoa podia doer tanto cá dentro, onde não se sente!
Do peso do trabalho? Diziam-me que era fácil ser alguém na vida, só tinha de estudar e fazer coisas importantes, como se fosse fácil!
Da melancolia? A tristeza era somente algo que sentia quando ouvia um ralhete ou sofria um castigo. Mal sabia eu que se podia entranhar na pele do existir!
Do amor? Escolher um outro alguém era simples, uma carinha laroca, proveniente de boas famílias e, estava feito. Ninguém me avisou que afinal amar tinha regras que não se compreendem!
Do infinito? O Universo era apenas um sítio onde podia viajar de nave entre os planetas da minha imaginação. Na ignorância infantil, acertei apenas que o cosmos servia para sonhar!
Na verdade, os “grandes”, que me educavam como havia de comportar um dia, nada sabiam do que me ensinavam. Unicamente tentavam plantar, na criança que eu era, uma semente de esperança sobre aquilo que eles julgavam ser viver. Pobres tolos néscios, que nunca encontraram um destino, nem percebiam que a sabedoria não se aprendia na escola, ou que a grandiosidade estava noutra coisa qualquer. Como podiam discursar a felicidade, se nunca, eles próprios, foram felizes?
Cresci assim, sem orientação verdadeira, a apanhar pancada da vida e a descansar as costas entre as vergastadas que iam e vinham de todos os lados, sem misericórdia, nem aviso. Fui calejando o espírito face aos tormentos e descobri que as regras estudadas eram falsas. Busquei então os meus próprios professores e instrui-me o mais que pude sobre as artes humanas. Conheci venenos, armadilhas, truques e, acima de tudo, tomei consciência que ainda tenho muito a aprender.
Estou aqui, tal como tu, viajante, entre o perdido e o encontrado. Preso ao nome que me deram, embora livre na percepção que conquistei. A riqueza tem para mim outros sinónimos, agora que a carne geme ao fim do dia, fatigada e dorida sem o vigor da meninice. A rotina, que chegou de mansinho e ocupou o seu lugar, vai roubando algum ânimo, ainda que, nunca me faça desmoronar. A simplicidade com que me seduziram desapareceu. Já não existem ilusões.
Apesar de tudo encontro algum orgulho por ter preservado a essência fantasiosa daqueles tempos. O rosto que me encara no espelho ainda apresenta traços de rebeldia e o olhar mostra ânsia de aventura. Há uma fome de conhecimento que se exalta do meu ser. Gestos irrequietos que me classificam de indomável. Ninguém me pode acusar de ter sido tomado pelo vazio, porque, no meio do desalento, ainda sei sonhar!

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