sexta-feira, junho 02, 2017

O sabor


Foi acordado por uma fada que dançava alegremente no seu rosto. Deixou-se ficar com os olhos fechados. Não tanto por preguiça, mas para que ela continuasse a sua dança e fizesse da sua face um palco para a magia, enquanto o julgava adormecido.
Passeava em rodopios e em saltos pelas suas feições, animada pelo chilrear de um pássaro pela manhã e o sol primaveril que irradiava da janela. Ele estava agradecido por aquela minúscula criatura, filha da fantasia, o tivesse escolhido para o pouso do seu bailado.
Tinha tempo de despertar. Momentos em que o mistério desce ao mundo dos homens são raros. Por isso, manteve-se imóvel, como espectador da sua própria alegria.
A certo momento decidiu levantar as pálpebras para que observasse a pequena fada. No entanto, ela, com enorme rapidez, transformou-se numa mosca! Não podia cometer a indecência de ser vista por um olhar humano, na sua verdadeira forma elemental.
A sua dança parou. Em vez disso, na sua forma varejeira, percorria-lhe a face com pequenas espetadelas provocadas pelas suas patas agrestes. Chupava a gordura pegajosa que lhe cobria a pele. Restos da transpiração nocturna provocada pelos pesadelos que lhe assombravam o sono.
Aquele suor sabe a sal. Ele conhece bem o sabor. Prova-o a cada grito de tormento que o faz saltar da cama em absoluto terror. A fada, agora na sua forma grotesca, parecia deliciar-se com aquela viscosidade, como se também ela quisesse provar o seu medo!
Sacudiu-a como a qualquer outra mosca. Ainda a tentou matar, mas a dita, com eximia mestria de voo, escapou-se por entre os dedos. Olhou em volta e nada mais restava a não ser a manhã. Sem fadas, sem danças na pele, sem magia. Apenas o gosto vazio da rotina…

2 comentários:

Unknown disse...

Oh!... Grande mestria imaginária!...
Faço-te uma profunda vénia de admiração! :))

Correndo o risco de não ter compreendido a tua mensagem, atrevo-me a pensar que, de certa forma, fantasiavas com algo ou alguém irreal na sua perfeição delicada e, na verdade, quando abriste os olhos (é inevitável fazê-lo), deparaste-te com a sua faceta mais negra, mais crua.
Amostras da falsidade que nos rodeia e que nos conduzem à desilusão, ao vazio.
Por mais que queiramos ver apenas o lado mais belo e inocente, tudo o mais se revela, mais cedo ou mais tarde e a máscara cai, a ilusão esvanece-se.

António Silva disse...

É uma boa interpretação sim :)
P.S.
Manda link que não publico. Depois mostro como se manda msg.