quarta-feira, fevereiro 24, 2016

Dark Cabaret


Era um casarão antigo, pertence de gente abastada, com um grande salão de entrada. Daqueles onde se pode organizar facilmente um baile com um número generoso de convidados. Algo me dizia que já tinham ocorrido ali uns quantos. Ao centro havia uma enorme escadaria interior para acesso ao andar de cima. A decoração fazia lembrar os anos vinte, ou trinta. Uma coisa vintage como dizem agora, embora mais parecesse um cenário saído de Hollywood.
Um piano, já desgastado pelo tempo, estava encostado à parede estrategicamente colocado para que a acústica do lugar o permitisse ser ouvido da melhor forma. Tocava sozinho, uma melodia alegre, com uma daquelas engenhocas que se veem nos filmes do velho oeste. Aquele sítio fazia-me mesmo viajar no tempo para um saloon, daqueles dos westerns que via na televisão quando era pequeno. Infelizmente esse género caiu em desuso.
Uma foto de grandes dimensões retratava o dono da casa. Não fora o facto de ser a cores em nada descorava do resto dos ornamentos. O homem ali apresentado tinha um porte vaidoso. O seu cabelo estava irrepreensivelmente penteado com o risco ao lado. Ostentava, orgulhoso, um bigode daqueles que se enrolam dos lados, completamente fora de moda, para não dizer ridículo. Seja como for, aquela aparência em nada fugia ao estilo do palacete, embora ache que, se a ideia era essa, a imagem ficaria melhor a preto e branco. Mas quem sou eu para opinar sobre moda?
A música jovial que saída do teclado automático do piano, com as suas notas entusiastas, fizeram-me rir da situação por toda a ironia que acarretava. Tentei, com os meus pensamentos do momento, criar uma letra para aqueles acordes que, divertidos, pediam a companhia de uma voz. Não era cantor mas comecei, no entanto, a trautear de improviso:

“Tenho sangue nas mãos
Sangue na roupa
Sangue nos sapatos
Salpicado no meu rosto
Vejo sangue nas paredes
Sangue pelo chão
Sangue em todo o lado
Salpicado por cada canto”

Cantarolei assim ao ritmo das teclas que seguiam sozinhas. Dei uma certa tonalidade jazz à minha voz para não contradizer a decoração. Sei que as estrofes não rimavam, mesmo assim procurei alguma métrica para descrever toda a cena sinistra que me rodeava. Creio que não foi mau.
O cadáver jazia no chão ensopado numa poça de sangue. Digamos que mais parecia um pequeno lago. Além disso estava tudo salpicado pelo tom carmesim que foi jorrando do homem a cada golpe que recebia. Saltou para as paredes, para o piano, para os quadros, para os móveis, para a minha roupa e para tudo que é sítio. Pode-se dizer que quando um martelo atinge um corpo humano de forma implacável, vezes sem conta, não se pode prever para onde vai jorrar toda a vermelhidão.
Não posso dizer que fazia grande diferença. O serviço foi feito com eficácia. A figura de porte vaidoso que ostentava o quadro estava agora irreconhecível no chão frio do salão salpicado. Suponho que o bigode ainda se podia reconhecer por entre face semidesfeita. Pode-se constatar que mesmo na desgraça não perdeu o orgulho. Bom para ele.
Podia ter sido mais cuidadoso no que diz respeito a limpeza. Uma martelada forte no crânio tinha sido suficiente para uma morte eficaz, mas deixei-me levar pelo entusiasmo e continuei a agredir freneticamente. Não estando ainda contente, depois do corpo cair com um forte estrondo, continuei as agressões aos pontapés. Às vezes gosto de ser dramático e exagero.
Resultado: ficou tudo manchado. Não havia grande problema nisso, simplesmente tinha de tomar um bom banho e livrar-me daquelas roupas. Não eram as minhas favoritas, logo, não estava arrependido. Quanto ao resto alguém havia de limpar.
Acabei por sentir um certo afecto por tudo aquilo. Sou um tipo sentimental apesar de tudo. Pode-se dizer, depois do quadro completo com toda a sua ironia, que existe aqui um bom argumento.
Agora queria apenas contemplar todo aquele ambiente de cabaret negro, com a sua música entusiasmada, a sua decoração vintage salpicada de carmesim, e hoje, completada com uma história violenta.

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