– Estamos invisíveis! Tens a certeza?
O líder do duo verificou os instrumentos novamente. – Sim. Já te tinha dito. Agora cala-te e observa.
– Não sei. Tenho medo. Não confio nesta tecnologia do futuro.
– Tem calma. Já fiz isto muitas vezes. Fica em silêncio e vamos espreitar a malta ali na mesa.
– Bolas! Não achas estranho entrar dentro de uma pintura!
Levou as mãos à cabeça. – Irra! Já te expliquei: este dispositivo permite entrar dentro de obras clássicas tal como esta, quando representam o quotidiano de antigamente. Cria uma dimensão compacta, através da reorganização da realidade, suportada pelas imagens da pintura. Desta maneira podemos estudar a história. – Gesticulou um desenho no ar. – Agora cala-te de uma vez por todas! Ainda nos percebem e confundem fantasmas.
– Está bem. Está bem! Eu acredito em ti. – Resmungou. – Mas repara, assim de repente, a olhar para eles, não parece serem muito diferentes das pessoas de hoje em dia. Olha só: estão na coscuvilhice!
– Sim, sim. Isso é uma coisa transversal a todas as eras. É uma parte essencial da convivência do ser humano. A sociedade criou os seus alicerces no ato de coscuvilhar.
– Estão a dizer o quê?
Verificou o tradutor. Só conseguia compreender algumas palavras. – É difícil entender. Estas línguas antigas são bastante diferentes das atuais. Confundem bastante os tradutores.
– Agora fiquei com curiosidade.
– Paciência. Tens as coscuvilhices do nosso tempo para te entreter. Embora neste caso, eu tenha algumas dúvidas. Repara bem, estão todos a falar com a rapariga bonita. A outra pobre coitada, está a olhar pela janela. Não lhe ligam nenhuma.
– Realmente. Aquela coisa na cabeça também não ajuda nada. Se continuar assim vai ficar solteira toda a vida. Podia aprender com a outra, ali toda oferecida! Olha só naquele malandreco com a mão no peito dela. – Apontou. – Nem se preocupa em ser subtil. Quer e apalpa sem qualquer pudor!
– É possível. Embora não caiba a nós fazer esse tipo de julgamentos. Vamos mas é fazer mais silêncio porque, apesar de estarmos invisíveis, ainda nos podem ouvir.
Um homem alto, de cabelo comprido, bem vestido, entrou na sala. Tirou o chapéu e cumprimentou com educação todos os presentes.
– Está bem. Eu calo-me. Deixa-me só dizer mais uma coisa, apesar de ainda não existir Heavy Metal nesta altura, os homens têm em todos os cabelos compridos e pinta de metaleiros, com aquelas roupas mais parecem uma banda de Folk Metal.
Riu-se. – Só tu para te lembrares de uma coisa dessas. Aponta esses pormenores todos e falamos sobre isso quando voltarmos. Se não estivermos sossegados, daqui a nada dão connosco. Já te avisei. Eles têm espadas a sério. Não queiras que venham atrás de ti. Aquelas lâminas são bem perigosas.
– Estamos protegidos, além disso não nos vêem.
– Isso pensas tu. Não é bem assim. Os fatos tornam-nos invisíveis até certo ponto. Em caso de ataque ficam vulneráveis, não são armaduras. As espadas podem trespassar. Acredita, já me aconteceu.
– Compreendido. Eu não me mexo. – Olhou para cima. – Também gosto da decoração. Aquele quadro é sobre o Ganimedes? Olha aquilo! Eu tinha a ideia desta gente de antigamente ser mais decente. Aquele cu é bem gráfico, mais parece pornografia! Além disso, estão todos à volta da moça, a salivar. Cá para mim, isto vai acabar de maneira obscena.
– Ai mãe! Não te conhecia assim tão puritana!? Eu mandei-te fechar a matraca e não fazer julgamentos! – Barafustou. – Isto não é nenhuma brincadeira. Agora o cão já nos topou. Está a ladrar para nós!
– Está bem. Desculpa. Não era minha intenção... – Encolheu os ombros.
– Nunca mais te trago comigo. Vamos embora antes de sermos apanhados. Não me apetece estar a fugir desta gente.
Regressaram. Fizeram mais alguns apontamentos para o relatório. – É apenas uma cena banal, sem interesse histórico para a minha pesquisa. – Concluiu o líder.
– Tirar estes fatos dá uma trabalheira. – Resmungou, pois cada peça da indumentária tinha de ser manuseada com cuidado. – Olha, quando estávamos lá dentro, contaste como a máquina transforma os quadros em realidade... – Bufou, enquanto se debatia com uma manga.
– Sim. Já te expliquei como funciona.
– Eu percebi, mas fiquei com uma dúvida. Se aquilo transforma quadros em vida real, como podemos saber se também não estamos numa pintura qualquer?
O líder fez uma pausa. Olhou em volta e apurou o ouvido. – Não sabemos!
Interpretação histórica de uma pintura na perspetiva de observador mais ou menos passivo
Conto elaborado para um desafio do Laboratório de Escrita, o qual consistia em escrever um conto sobre a interpretação de uma obra de arte clássica.
Obra: Conversação.
Autor: Pieter de Hooch
1 comentário:
Belo texto que gostei de ler. O meu elogio
.
Saudações poéticas e amigas
.
Enviar um comentário