sábado, fevereiro 25, 2023

O Pianista


Já repararam como o acto de chorar pode representar vários sentimentos? Para os bebés é uma forma de chamar a atenção, já para os adultos pode ser: dor; angústia; desgosto; alívio; alegria; emoção... Calhou a este último ser o responsável pelas lágrimas de uma plateia inteira. Tomados pela comoção, cada um dos espectadores, expressou-se com gotículas salgadas a escorrerem pelo rosto. Isto antes de se conseguirem levantar para uma monumental e demorada ovação de pé. 

No palco, o pianista tentava agradecer por toda a aclamação, com uma linguagem corporal tímida. Parecia até, estar a pedir desculpa por existir a toda aquela gente. Após longos minutos, lá conseguiu convencer os espectadores a parar com as palmas. Contudo, passados poucos segundos, começaram todos a gritar em uníssono «MAIS»! 

O pianista, no alto do seu apogeu, declinou. Tentava acalmar a assistência sem sucesso. A sua cabeça rodava em negação. A plateia não se contentava com aquela resposta e insistiam «MAIS»! «MAIS»! «MAIS»! 

«NÃO»! A voz do pianista ecoou por toda a sala de espetáculos. Soltou um grito visceral, uma ordem imperativa saída diretamente da alma. Calaram-se todas as vozes insistentes. Ficou apenas o silêncio. 

«A peça não está completa, muito menos é da minha autoria. Eu não mereço os vossos elogios». Desabafou o pianista, perante os rostos surpreendidos que o encaravam atónitos. 

«Ouvi os primeiros acordes num sonho, quando era criança. Ficaram entranhados na memória. Eram uma presença constante em tudo o que eu fazia. Aquela harmonia não me abandonava, estava constantemente a ouvi-la na minha mente, por isso, decidi aprender música». Explicou o pianista. 

«Depois, enquanto crescia, sabia que tinha de encontrar o resto da melodia. Comecei então a procurar nos pequenos pormenores da vida. Aos poucos descobri o segredo. Certas cores transformavam-se em notas musicais. Algumas paisagens convertiam-se em pequenos trechos, assim como os beijos no calor da adolescência». 

O pianista projectava a sua voz intensa por todo o teatro. Chegava a todos sem qualquer auxílio de equipamento sonoro. «Aprendi mais tarde o nome do fenómeno; chama-se sinestesia. Acontece quando o cérebro interpreta algo com um sentido trocado, no meu caso imagens, sabores, toques, são interpretados como música. Em cada acorde, em cada pequeno trecho descoberto, eu acrescentava à partitura. Aos poucos, foi ficando mais completa até se transformar naquilo que toquei para vocês hoje». 

O público escutava a explicação com curiosidade. Certamente acreditavam que a genialidade daquele pianista estava acompanhada por uma dose generosa de loucura. Talvez não estivessem a enganados. 

O músico, calou-se de forma abrupta. Ficou quieto e encarou-os durante alguns momentos. Logo a seguir correu para o piano. Pegou nos papéis da partitura e acrescentou mais umas quantas notas. «Vocês querem mais? Então eu dou-vos mais»! 

Acomodou-se na sua pose concentrada, sentiu as teclas e tocou durante cerca de trinta segundos. Isto, se fossem contados pelo relógio. Já para a plateia, o tempo estendeu-se. Cada nota parecia uma viagem e aquele meio minuto transformou-se num universo inteiro. 

«Gostaram»? O pianista voltou até à borda do palco. «Esta parte escrevi com as vossas lágrimas. Mais um pequeno acrescento à obra completa. Mas como disse, eu não posso receber o mérito da sua autoria». 

Começou a andar de um lado para o outro. «Esta composição, é da autoria do próprio Criador. É a música da vida! Talvez contenha até o segredo do Universo e existe em todas as coisas. Eu só me limito a tocar aquilo que consigo entender. No entanto, podem acreditar. Vai chegar o dia em que eu vou conseguir completar a melodia. Depois, tudo fará sentido». 

«Porquê»? Os rostos fixos no pianista adivinhavam a pergunta. «Porque desde o nascimento; desde a primeira estrela; desde a primeira centelha de criação; esta sinfonia está lá. Com todos os Enigmas do entendimento humano respondidos. ». Quietou-se por alguns instantes. 

«Quem sabe, tudo se resuma à consciência solitária de cada um de nós, perante a nossa própria fragilidade. Contudo, na minha opinião, não precisamos de enfrentar esta existência sozinhos. Podemos encontrar conforto e inspiração nas histórias, na arte, na sabedoria e naqueles que nos rodeiam». 

O seu discurso mais parecia uma declamação poética. As palavras surgiam-lhe na boca de forma espontânea, sem qualquer tipo de reflexão ou ensaios prévios.

«Devemos procurar a verdade, a beleza e a bondade no mundo e em nós mesmos, encontrar assim um sentido para a nossa vida e um lugar no cosmos. A nossa pequenez torna cada momento precioso e único. Então, que todos possamos vivenciar esta liberdade, amar intensamente e aprender sempre»!

Quem já teve um momento de revelação ou uma ideia grandiosa, certamente reconheceu a expressão iluminada no rosto do pianista. A mesma de quem consegue ver a ordem escondida no caos.

«Quando finalmente completar a partitura, talvez toda a nossa ignorância desapareça e algo novo nasça, gerado nos alicerces da sabedoria. A vida é, assim, um misto de descoberta, viagem e despedida. Uma melodia interpretada por todos os sentidos, como esta peça musical que partilho e componho convosco»… 

Deixou a frase a meio e olhou para o piano com uma lágrima a cair do seu próprio rosto antes de continuar. «Julguei estar a compor um requiem para um homem só, quando afinal era uma epopeia para cada um de nós»! 


1 comentário:

- R y k @ r d o - disse...

Confesso que gosto de ouvir tocar piano.
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Feliz fim de semana … Cumprimentos poéticos
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