quarta-feira, janeiro 19, 2022

Sorrateiro e invisível

Olhou para o espelho durante alguns momentos, o mesmo para o qual tinha olhado antes daquela noite em que tudo mudou. Recordou-se das feições, da roupa que usava, do entusiasmo que sentia, mas principalmente da inocência daquele tempo em que a juventude era a sua imortalidade. Abandonou esses pensamentos e focou-se no agora. Abriu a porta de casa e observou a azáfama da cidade. O escuro já se fazia sentir, contudo era disfarçado pela iluminação das ruas. Parecia que continuava a ser dia a julgar pelo tamanho da multidão.

Saiu. Misturou-se entre eles. Era apenas mais um rosto entre tantos. Deslocava-se com rapidez, como um espectro. Uma sombra que surge no canto do olho e desaparece de imediato. Conhecedor da vida nocturna da cidade, depressa encontrou um trajecto que o levou aos becos menos movimentados. Sabia o seu destino e chegou até lá com ligeireza. Agora só restava esperar na penumbra duma esquina.

Ela apareceu. Uma mulher tão bonita. Cheia de juventude e de sonhos. Inocente, tal como ele já foi, sem saber o que a noite esconde.

Observou-a. Trazia um sorriso leve e vestia-se com tonalidades coloridas, como sempre. Era perfeita. Sabia isso desde o primeiro momento em que a viu e confirmava-o a cada vez que a seguia, pelas ruas da sua rotina que conhecia tão bem.

Aproximou-se por trás dela. Sorrateiro e invisível. Ela não o percebeu. Nunca o tinha percebido mesmo depois de ele o ter feito inúmeras vezes, como um ritual quase sagrado. Silencioso, chegou-se cada vez mais perto, a escassos milímetros. Podia sentir o perfume e o calor que emanava do corpo dela. Contemplou-lhe o pescoço longo, com a linha da jugular a insinuar-se entre o cabelo que dançava a cada passo que dava. Tão linda, tão perfeita, em cada gesto e cada traço.

Era difícil resistir à atração. Chegava a ser violento saber que podia tomá-la facilmente. Uma mão na boca silenciava o grito. A outra arrastava-a pela noite dentro. Podia ser dele. Toda dele. Mas hoje não… Como todas as outras vezes deixou-a ir. Amanhã voltava novamente para a idolatrar, seguindo-a em segredo e nas sombras.

Regressou a casa e olhou novamente o espelho. A ausência de reflexo incomodava-o. Restava-lhe a lembrança da sua imagem dos tempos em que era um jovem. Só isso. Um pequeno vínculo que o ligava à humanidade.

O dia aproximava-se e o vampiro abandonou aquelas memórias. Era hora de descansar. Talvez na próxima noite não fosse capaz de resistir à sede, ou talvez continuasse a fingir que também ele podia amar.


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita


2 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Um belo conto que gostei de ler.
.
Saudações cordiais
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos

Parapeito disse...

Pois é.
Uma questão fica no ar.
O resistir à sede ou o fingir que podia amar...
Eu vou acreditar no amor, enquanto não tiver sede :)
brisas doces
Gostei muito.