domingo, outubro 17, 2021

As mentes não foram feitas para ser lidas

Sentaram-se na mesa frente a frente. Apesar de ser um encontro informal, houve uma altura em que cruzaram olhares. Não se pode contabilizar o tempo que demorou. Talvez fosse um segundo, um minuto, ou até mais, ou ainda menos. Quem sabe? Neste tipo de situações, que mais parecem uma eternidade, é impossível dizer. Mas na realidade, pouco ou nada importa.

Ele olhava-a, como se saísse de si mesmo para dentro dela. Um arrepio percorreu-lhe o corpo como se a pele ganhasse vida própria; o coração disparou como num susto violento; os membros bloquearam como se a vontade já não pertencesse a ela. Era apenas um olhar, mas ela sentiu muito mais do que isso. Era como se o interior da sua pele, escrito com os segredos e desejos mais profundos, se transformasse em folhas de papel e ela fosse um livro que ele podia ler através dos seus olhos. Ele folheava cada página sem pressa, enquanto consumia cada palavra com uma atenção sobrenatural.

O canto da boca dele começou a curvar para cima dando início a um sorriso dominador. Nessa altura, ela, com toda a força de vontade que conseguiu acumular por detrás da sua mente nua, desviou o olhar. Ainda assim, continuava a senti-lo, dentro de si, a ler a sua mente sem pedir autorização. Sentiu muita vergonha, ficou corada, com medo, rendida, num misto impossível de emoções. Presa na eternidade daquele momento. Sem qualquer tipo de muralha que a escondesse daquele olhar penetrante.

– Sente-se bem? – Perguntou ele com a gentileza de quem sabia a sua fragilidade interna.

– Sim, sim, claro! – Respondeu atabalhoadamente.

– Por momentos julguei que estivesse nervosa. Não foi essa a ideia com que fiquei quando me falaram da sua reputação. – Entregou-lhe uma pasta com um relatório sobre um projecto qualquer. Ela soltou um risinho ridículo, como uma adolescente aparvalhada.

– Não! Quer dizer... Não sei quem foi que lhe disse isso, mas pode ter a certeza que sou extremamente profissional naquilo que faço. – Abriu a pasta escondendo o rosto no relatório.

– Eu sei. – Afirmou ele com uma serenidade convicta na voz. – Espero que o relatório seja suficientemente claro. – Rematou com uma ironia subtil, já que ela não se conseguia concentrar na leitura por causa dos nervos inquietos. Já nem se reconhecia. Nem sequer conseguia ler o título escrito em letras grandes e maiúsculas que pareciam que se misturavam de forma confusa e ilegível.

Ela engoliu em seco. Pouco mais sabia daquele homem do que o seu nome, a sua profissão e que tinham marcado aquela reunião para tratar de negócios. Mas ele sabia tudo sobre ela. Parecia impossível! O pensamento de uma pessoa não pode ser lido, mesmo assim ela sabia que ele conseguia fazer isso. Seria a sua cabeça a pregar-lhe partidas? Estava louca? Não! A expressão dele mantinha-se fixada nela. Continuava a ler os segredos dela sem qualquer tipo de pudor.

– Então, o que me diz sobre o relatório? – Perguntou diante do silêncio dela.

– Eu... – Não foi capaz de continuar a resposta. Finalmente conseguiu ler as verdadeiras palavras no documento. Destacava-se o título: “FICHA DE PERSONAGEM''. Seguia-se, o seu nome, idade, com todas as características possíveis e imagináveis sobre si própria. – Eu... Não sou real! – Concluiu.

– Eu sei. – Confirmou o autor.


Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita

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