quarta-feira, outubro 25, 2017

O dom da inteligência


Uma mosca pousou na minha cabeça e apanhou boleia nos meus pensamentos. Na sua forma de insecto repugnante e na insignificância da brevidade da sua existência, acompanhou-me numa das minhas viagens sem destino. Não a sacudi. Durante alguns metros serviu de companhia ao palmilhar dos meus sapatos.
Enquanto circulava as ruas e misturava a minha figura com outras gentes nas cores da multidão, ela foi aprendendo sobre a organização dos homens. Mostrou algum interesse nas primeiras impressões, no entanto, logo percebeu que tudo aquilo era demasiado caótico para quem apenas almejava alimentar-se numa gordura qualquer.
A sua riqueza era aquilo que nós entendemos como imundice. Tudo o resto era demasiado complicado e inútil. Os bichos a quem Deus concedeu o dom da inteligência regulavam-se por ideias estranhas, que mais pareciam uma prisão aos olhos de quem pode voar. Por isso abandonou-me e continuou o seu caminho.
Depois de ter ocupado alguns momentos de mim mesmo com aquela companheira minúscula, não deixei de meditar sobre o seu comportamento e comparei-a comigo mesmo. Interroguei-me o que fazia ali no meio de vivências simples, se afinal de contas eu sabia imaginar. Senti um certo asco pela banalidade a que chamamos ordem.
Senti inveja dos artistas, que com o seu instinto criativo conseguem fugir à realidade nas suas obras, sem terem medo de ser apelidados de loucos. Afinal de contas a fronteira entre a loucura e a genialidade é quase imperceptível. A única coisa que as divide possivelmente é o medo. O eterno receio de saltar entre a pequenez e a grandiosidade. Porque no meio está um abismo e a queda pode ser dolorosa, por isso esquecemo-nos que temos asas e podemos voar para lá do que nos define…

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