– Queres acabar comigo!? – bufou Sara com aqueles olhos enormes completamente abertos, sem pestanejar.
– Sim – respondeu Joaquim, como quem está resignado.
– Espero bem que isto seja uma brincadeira! Investi vários anos nesta relação. Sempre fui bem clara ao querer construir um futuro contigo. Crescemos juntos até aqui e fazemos juras de amor praticamente desde a adolescência. Sacrifiquei-me e dei tudo de mim. Entreguei-me de corpo e alma e acreditava fazeres o mesmo. Criámos uma vida juntos, por amor de Deus! – lembrava Sara. – Agora estamos quase na meia-idade e acabas desta maneira!? – O tom danado da voz dela, juntamente com os olhos esbugalhados, quase tornavam a cena cómica, não fosse o facto de ela estar mesmo extremamente zangada.
– Não é uma brincadeira. Infelizmente estou a falar a sério – argumentou Joaquim.
– Por favor, dá-me uma boa explicação! – exigiu Sara, com o rosto a transparecer fúria.
Um dia antes
Não era comum ele andar de comboio. Detestava as confusões. Aglomerados de gente entretida com conversas banais. O Joaquim gostava da sua vida simples e amiga do ambiente. Nada de discotecas, festas, ou outras ocasiões com a participação de muitas pessoas. Adorava a sua existência pacata junto da companheira, Sara. Morava longe das cidades, onde não há pressas. Quando precisava de se deslocar, utilizava o seu carro elétrico, do qual tinha um particular orgulho, pois tinha-o comprado com as suas poupanças.
Naquele dia, como teve de tratar de uns assuntos naquela zona, mesmo sozinho, decidiu fazer uma viagem turística pela linha do Vouga. Alguém lhe disse ser uma viagem bonita, por paisagens naturais. Lembrou-se igualmente das histórias da avó, ela falava bastante sobre os passeios naquela linha “no tempo dela”. Esses argumentos despertaram-lhe a curiosidade e foi.
Ficou um pouco desapontado quando viu uma locomotiva a diesel, pois esperava uma clássica a vapor. Para compensar, as carruagens eram de madeira, completamente vintage. Cheiravam a antigamente. Reparou na grande quantidade de turistas a participar na viagem. Imaginava os passageiros de outros tempos, com roupas típicas, a deslocarem-se entre a casa e a cidade para trabalhar, sem imaginarem que no futuro aquela vida dura ia ser recordada como uma forma de turismo.
Entrou numa carruagem e sentou-se num banco qualquer. Imediatamente, um homem mais velho, possivelmente na casa dos sessenta, sentou-se em frente a ele. Vestia de forma peculiar. Usava um chapéu largo e um casaco castanho, apesar do dia estar quente. A primeira impressão de Joaquim foi a de ser um figurante, contudo o fulano pegou num caderno de apontamentos e numa caneta daquelas antigas, com recarga de tinta. O homem olhava em volta e ia escrevinhando enquanto o comboio seguia o seu trajeto. Aparentava não dar importância aos cenários por onde passavam, estava só concentrado na sua escrita.
Abstraído a olhar pela janela, Joaquim deixou de lhe dar atenção. Era de facto uma viagem bonita, como lhe tinham prometido. Só quando estava a chegar ao destino reparou no homem novamente e em como este o olhava com alguma curiosidade. Continuou a fixá-lo durante alguns segundos até escrever algo no caderno.
Na chegada, o homem arrancou uma folha e dobrou-a em quatro. Levantou-se logo de seguida e saiu apressadamente, deixando o papel dobrado no assento. Joaquim pegou nele e tentou localizar o homem entre o grande número de turistas a bloquear a saída. Não o conseguiu encontrar no meio de tanta gente. A curiosidade do Joaquim impeliu-o então a ler a folha esquecida. "Acaba com a Sara", dizia o bilhete.
De regresso ao presente
– Deixa ver se percebi! Vais terminar uma relação de anos comigo porque um idiota qualquer deixou um bilhete no comboio a dizer para acabares comigo! Não te parece ridículo? – Sara continuava incrédula. Mantinha os enormes olhos abertos, pareciam estar prestes a saltar das órbitas, tal era a fúria sentida por ela.
– Ainda não percebeste. Ele não era um idiota qualquer. – Joaquim fez uma pausa dramática. – Reconheci aquela caneta mais tarde, quando cheguei a casa, e não tive dúvidas.
– Como assim, reconheceste a caneta? Explica bem explicado!
Joaquim tirou um pequeno estojo do bolso. Abriu e mostrou uma caneta antiga.
– Deram-me este presente quando entrei para a escola primária. Na altura foi muito cara. A ideia era usá-la quando fosse adulto. Depois, com o surgimento das novas tecnologias deixei de escrever à mão e passei a fazer as minhas notas no telemóvel. Nunca cheguei a usar a caneta. Por isso, ficou escondida numa gaveta e já não me lembrava dela, até ontem. O homem usava exatamente esta mesma caneta. Sabes o que isso significa?
Sara não respondeu. Atónita, limitou-se a esperar a resposta.
Joaquim segurou a caneta diante dos olhos dela.
– Aquele homem era eu, vindo do futuro!
Conto elaborado para um desafio de escrita do site: Laboratório de Escrita
1 comentário:
Adorei esta "estoria"
Desde o princípio até ao fim inesperado!
Adorei o passeio pela linha do Vouga.
E depois que maravilha de argumento para terminar uma relação!
Imaginem se pega :)
Gostei muito da imaginação do Joaquim...foi imaginação não foi?
Pobre da Sara.
Brisas doces **
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