sábado, fevereiro 17, 2018

Identidade absurda


Uma solidão imensa tomou conta das ruas da vila. Não há trânsito. Os estacionamentos estão vazios. O céu está cinzento. Nuvens ameaçadoras anunciam que vai chover a qualquer momento. Sopra um vento do sul trazendo consigo uma caricia fria. Como não há sol que aqueça o corpo e a alma, o mundo parece ainda mais gelado do que realmente é.
Aqui e ali silhuetas humanas percorrem a calçada num passo lento e perdido. São os esquecidos cuja dor se agiganta em dias como este. Gente sem nome, como espectros, que se atrevem onde os outros não encontram conforto. Buscam, fora do vazio do lar, uma outra alma vivente com quem possam cruzar um olhar e um cumprimento, como uma esmola atirada a quem mendiga, para que dessa forma possam roubar à solidão um instante de companhia.
A inquietação toma conta da mente dos poetas em dias assim. Sem amor que os salve da própria identidade absurda. Refugiam-se em horas inebriadas pela loucura, visto ser insuportável encarar a sobriedade a quem não se basta com a própria pele. As ideias são maiores que o mundo e o pensamento infinito como o universo. Ainda assim, não há um lugar que acolha quem pertença a lado nenhum.
Estar infindavelmente perdido é uma forma de viver. Sem graça, nem tronos, ou glórias. Raça escorraçada de qualquer paraíso, abaixo de todas as castas. Dói no próprio ser o martírio de existir. Por isso palmilham-se as ruas caladas com receio da intempérie. Com as suas gentes mansas recolhidas na comodidade de quatro paredes e um tecto. Que sabem eles da bênção amaldiçoada que é estar em constante desassossego?
A escuridão adensa-se nos céus enublados. Misto de anoitecer e a chuva que ameaça. Deambular sem destino não é sensato mesmo para um desajustado, quando a natureza exibe o seu poder. Também eu devo recolher-me…
Talvez a noite traga a tempestade.
Talvez o sonhar traga a companhia.
Talvez o adormecer engane a saudade de uma vida não vivida.
Talvez a chuva engane a saudade de uma vida por viver.
Talvez tudo que tenha ficado por dizer, tenha sido dito no esquecimento que o tempo traz.

2 comentários:

Unknown disse...

Há um misto de inquietação, prazer, desespero e conforto quando "não há um lugar que acolha quem pertence a lado nenhum"...

Janela Indiscreta disse...

As almas desajustadas nunca conseguirão ter sossego. A insatisfação é uma dor permanente e uma maldição.