sábado, dezembro 03, 2016

A mudança (O Narrador VIII)


Foste embora mas voltaste. Igual mas diferente. Com mais acção e menos mistério. O rosto lavado como se fosses outra pessoa. O corpo adornado para esconder as mazelas, quer da carne, quer da alma. Diria que cresceste, evoluíste, ou até mesmo que vieste de uma outra linha temporal, ou até de outra realidade. Houve uma mudança e isso não é mau. Simplesmente alterou-se aquilo que eras. A vida é assim. Cheia de transformações. Quanto a mim, fico contente por narrar essas diferenças.
Olho agora para ti com uma certa admiração. Sei que sempre o fiz, mas desta vez é diferente. Mudaste de forma verdadeira. Creio que nunca acreditaste que fosse possível isso acontecer. Se calhar nem eu. No entanto aqui estás perante mim. Outra pessoa. Uma metamorfose refectiva que te deslocou da tua própria existência para outro acontecer. Um toque de poesia, romantismo e aventura. É por coisas assim que dizem que a vida de algumas pessoas dava um livro.
Não deixa de ser impressionante a tua força de vontade para mudar. Ou, também, a própria vida que se encarregou de trazer a mudança, mesmo que esta assustasse. Uma mistura destas duas perspectivas. Foi rápido, quase de um dia para o outro. Como saltar uma fogueira e passar entre as chamas incólume. Assim que atingiste o solo e te apercebeste do que aconteceu, verificaste que afinal foi simples. Agora tudo é novo!
Enfim, uma insignificância para a história do mundo. Um gigantesco salto para o teu mero ser. Sim, eu sei que foi uma tentativa distorcida de plagiar Neil Armstrong, mas há que ter em atenção que isto merece uma analogia grandiosa. Afinal de contas, não deixa de ser algo muito importante. Mudar!
Verifico também que te encaixas melhor na dita sociedade. Parece até que a tua peça de puzzle consegue caber quase na perfeição e cumprir o que lhe é suposto. Já não é um simples fingir. É mesmo verdade. Fazes parte integrante de um todo. Isso completa-te, pelo menos até onde é possível completar… Já agora, sabe bem ver-te com um sorriso sincero no rosto. Um pouco de luz clareia sempre os pensamentos mais tenebrosos…
Não faças essa cara. Sabes bem do que falo!
Apesar de seres como outra pessoa, algo em ti mantém-se imutável. Esse mesmo facto que tentas esconder. Quando o vazio faz parte de nós, não existe forma, pelo menos que eu conheça, de o evitar por muito tempo. Ele continua lá. Ainda que de forma mais suave. Sem aquela crueldade ameaçadora a assombrar qualquer vislumbre de felicidade. Não te deixes levar pela euforia porque, quando menos esperares, vai manifestar-se com brutalidade para reclamar o que é seu.
Gosto deste teu novo ser. O antigo foi embora para surgir esta nova imagem. Creio que só o espelho, quando tu o olhas, pode reflectir aquilo que está verdadeiramente escondido em ti. Os outros contemplam apenas a aparência, a atitude, as novidades… Tudo camuflagem para os teus medos!
Não digo isto para te desanimar. Apenas o faço como um alerta para o que pode acontecer (ou vai acontecer). Que na sua forma implacável não te apanhe de surpresa e te faça rastejar novamente por entre um pântano de lágrimas, como já o fizeste tantas vezes.
Tem calma. Não me interprete mal. Podes continuar a sorrir como no início desta conversa. Não desejo a tua desgraça. Pelo contrário. Sei bem que és forte. Se foste capaz de chegar até aqui, também és capaz de seguir em frente. Não subiste esta escadaria para voltar a cair no mesmo nada que te sentias antes. As minhas palavras parecem duras. Possivelmente até são. No entanto, sabes perfeitamente que, na minha função de narrador, ainda que imparcial, tenho por ti alguma estima e ver-te falhar não é algo que deseje descrever. Prefiro as façanhas da tua força contra as angústias da vida, do que um marasmo monocórdico de um estado de tristeza aborrecido!
Tem em atenção que a melancolia até me dá aso à criatividade. Chama a veia de poeta que há em mim. Mesmo assim a derrota é algo que não quero cantar! Sabes bem que não!
Fala-me agora dos teus sonhos! Essa fantasia que também habita em ti não a podes deixar desaparecer. Se há algo que te torna fascinante é esse teu mundo interior, que tanta vida brota dessa fonte que é a tua centelha de imaginação! Era capaz de ficar horas ouvir-te contar todos os teus desejos, como uma criança maravilhada a conhecer a poesia pela primeira vez.
...
Porque esse silêncio?...
Não me vais responder?
Resumes a tua resposta um sorriso que se arqueia no teu rosto?
Assim deixas incontáveis enigmas no ar! Gosto disso! Sabes bem como cativar a minha atenção, para me manter por perto a narrar aquilo que és!
Está bem. Deixo-te ir embora com esse virar de costas e piscar de olho maroto. Afinal de contas ainda tens mistério em ti e uma vida nova para desfrutar. Nada contra. Pelo contrário. Segue esse caminho que em breve voltarei para o relatar. Seja como for, tenho de continuar a cumprir a minha função como teu narrador!

Sem comentários: