quarta-feira, fevereiro 18, 2015

A companhia (O Narrador III)


Então? Olhando para ti diria que estás prestes a desmoronar. Esses olhos contraídos a tentar segurar o choro não auguram coisa boa. Já agora, a porta não tem culpa. Podes soltar a tua raiva noutra coisa qualquer. Bater assim tão de força ainda a põe abaixo. Afinal o que se passa contigo?
Há!... Já percebi. Voltaste a cair no abraço da solidão. É fria, não é? Dá-te medo. É um sentimento tão vazio que assusta. Enche os teus sonhos de terror e as tuas noites de insónias. As lágrimas não parecem ter grandes problemas em cair nestes dias.
Ainda há pouco saíste desse abismo e já estás de volta. Tanta gente ao teu redor e tu no teu cantinho, sem que ninguém repare em ti. A pressão é insuportável. Vão-te ignorando num ciclo vicioso e quanto mais te tentas aproximar, mais te afastas.
Compreendo-te…
Agora pergunto-te: Porque é que isso acontece?
Eu sei que não me queres responder. Cá para mim, talvez nem tenhas a resposta. A única coisa que me podes dizer é que dá medo! Eu sei. Portanto vou-te dar um conselho: Aprende a usar as vantagens que a solidão te oferece.
Sim! Elas existem. Acredita em mim. Não faças essa cara de quem está ouvir um sermão repetitivo. Já tens obrigação de me conhecer e saber que falo muito a sério.
Não te estou a dizer apenas palavras bonitas que li em pequenas frases de pseudo auto-ajuda que vão proliferando pela internet. A maior parte dos idiotas que as partilha não faz a mínima ideia do seu significado. Mas eu sei. Diria mesmo que a solidão tem várias vantagens até.
E tu também sabes! Sabes sim! Não queres é admitir. Preferes ir com o medo. Esse cabrão que não te deixa raciocinar em condições. Parece que gosta de te fazer chorar. Mas eu digo-te, com autoridade até no assunto: A solidão tem algo de fascinante, ajuda-te a ver as coisas mais claramente. Traz ao de cima o teu lado mais… (como hei-de dizer) transcendente! Por isso, aconselho-te a tirares algum tempo, todos os dias, para ficares apenas na tua própria companhia. Só assim consegues observar os outros de maneira mais eficaz.
Olha que o comportamento das pessoas ensina-te muito. Sabias? Se calhar já reparaste. Não deste foi muita atenção. A tua preocupação está centrada nas regras do mundo. Que se fodam!
Sim, podes dizer a asneira à vontade. Não há qualquer tipo de problema. Afinal de contas só aqui estamos nós e eu apenas me limito a narrar a tua vida. Não vou fazer grandes julgamentos e se os fizer, pouco importam. Estás à vontade. Um impropério de vez em quando sabe mesmo bem. Ajuda a expulsar sentimentos nefastos de dentro de nós. É uma espécie de exorcismo caseiro.
Isso mesmo. Pragueja com força! Estás a ver, agora até te ris. Ainda bem.
Voltemos aquilo que se pode aprender estando só. Para começar, é suposto nós controlarmos a solidão, não o contrário. Por isso vamos observar e aprender. O mundo tem muitos segredos e acredita em mim quando te digo que dá muito jeito conhecê-los, para os usar em nosso proveito quando assim é necessário.
Viver, já de si é penoso, não há necessidade de intensificar essa sina com a insegurança na nossa humanidade. Nem apostar a nossa felicidade em regras igualmente humanas. A sociedade, ao querer fazer de ti um dos seus membros sem vontade própria, está jogar um jogo que consiste em fazer-te acreditar que és um ser único, embora tenhas de fazer tudo o que os outros fazem.
Quando te apercebes disso acordas e aprendes a jogar contra o mundo. Deixas de ser mais uma ovelha e passas a ser o lobo. Claro que essa transformação é muito dolorosa, muito para além das dores já conhecidas da nossa zona de conforto, é por isso que muita gente se acomoda. Mas a única forma de mudar é através da solidão e daquilo que ela nos pode ensinar.
Acredita, se não tiveres medo da solidão, aí sim, vais sentir verdadeira companhia.
Quando o mundo te tentar derrubar vais saber jogar as cartas certas para venceres o que é banal. Para seres verdadeiramente diferente, há que pensar fora das regras. As mesmas que te dizem que a companhia é obrigatória.
Aprende a amar a solidão como uma amante proibida, sem esquecer de a temer como um condenado teme a sentença, ainda assim ultrapassar a barreira dos seus limites para conhecer a verdadeira liberdade. Percebes, não percebes? Eu sei que sim.
E agora, depois desta conversa em que servi mais de psicólogo, do que narrador da tua vida (Sim, eu sei que a culpa é minha, mas não consigo evitar em dar-te conselhos.
Afinal de contas, não me apetece narrar monotonia!) vou-me ausentar. Embora não tarde em voltar. Quero ver o que se segue nessas tuas pequenas aventuras pelo quotidiano que tanto me fascinam. Ainda há muita coisa que tenho a contar sobre ti em pequenos detalhes de pura inquietação…

6 comentários:

Semblante das Dez disse...

Magnifico texto sobre a condição humana.De facto aprender a amar a solidão doí.

Sandra Louçano disse...

Um diálogo extraordinário, com o eu, enquanto ser sensível.
Parabéns.

Imprópriaparaconsumo disse...

Dizem que que temos de aprender a estamos sozinhos com a solidão. Não é nada fácil.
Muito bom o teu texto :)

Anónimo disse...

Ah és assim tão paciente e compreensivo contigo e com as pessoas?

António Silva disse...

Sou.

Anónimo disse...

Parabéns,então...