quinta-feira, novembro 14, 2024

Manifesto de desprezo


Sou o Senhor da solidão

Nesta terra vazia

Cheia de gente perdida

Sem qualquer ambição


Tenho nojo da acomodação

Dos filhos da apatia

Na sociedade apodrecida

Não aceito a formatação


Cruzo-me com olhares sem paixão

Em cada rosto que se desvia

Da verdade tão temida

Preferem esconder-se na ilusão


Recuso esta resignação

Duma vida sem ousadia

Prefiro uma voz não ouvida

Às grades da submissão


Não aceito a rendição

Com asco da covardia

Desdenho da monotonia

Dá-me nojo o fedor a podridão


Sou a sombra na multidão

Desprezo pela hipocrisia

Declamo o grito da fúria

Faço-me o caos a exigir libertação


sábado, outubro 05, 2024

De cabeça erguida


Sigo pelo meio da rua vazia 

Orgulhoso como um desistente

Exibo o meu sorriso descontente

Aos espectros na calçada sem vida


Sigo como uma alma perdida

Rotulado como demente

Na minha derrota permanente

Guiado por uma bússola partida


Sigo com passada destemida

Enfeitiçado pelo horizonte 

Rumo a uma meta inexistente

Onde encontre alguma guarida


Sigo de cabeça erguida

Alheio a toda a gente

De passada insistente

Numa jornada incompreendida


Sigo na certeza da dúvida

Fixado no transcendente

Desajustado continuo em frente

Apoiado nesta oposição destemida


Sigo sem que a minha voz seja ouvida

Desprezado e nunca subserviente

Que a sociedade me chame insurgente

Sem que a minha diferença seja aplaudida


quarta-feira, setembro 25, 2024

Ode ao progresso, aos políticos e ao Zé Povinho


Anoitece na vila. 

As estradas rasgadas, 

cicatrizadas, 

da povoação a ficar vazia. 

Sem almas perdidas, 

penadas.

Começam logo pela matina.

Levantam-se derrotadas,

falhadas,

levadas pela rotina.

Todas atarefadas,

apressadas,

atravessam assim o dia.

No trabalho amarguradas,

frustradas,

sem a recompensa prometida.

Continuam esperançadas,

abandonadas,

na sina resignada.

Andam distraídas,

acomodadas,

sem revolta destemida.

Voltam para casa sossegadas,

aconchegadas,

sem dar pelo passar da vida.

De noite recolhidas,

cansadas,

no lar que lhes dá guarida.

No sofá sentadas,

entretidas,

não repararam na rua rasgada,

nem nas palavras dadas.

Iludidas,

esquecem a promessa não cumprida.

Ficam as excelências perdoadas,

absolvidas.

Discursam os políticos de voz comovida,

desculpas mal paridas,

ofensivas.

Escuta indiferente a manada.

Cantam mentiras descaradas,

desavergonhadas,

ao Zé Povinho de orelha enganada.

O progresso nas estradas,

remendadas,

baboseiras de cobardia escondida!

Politicamente corretas vendidas,

fingidas,

a quem não entende mais nada.

Sobram a ruas cicatrizadas,

maltratadas.

E a revolta fica castrada...


domingo, setembro 22, 2024

Alguém disse que eu pareço um turista


Sou um turista no meu próprio existir 

Veraneio no estar 

Aprecio o pensar 

Passeio no meu próprio sentir

Cenários a mostrar

Mistérios a desvendar

Caminho no meu próprio descobrir

Almas para amar

Corpos para acarinhar

Desenho o meu próprio sorrir

Actor a encenar

Personagem a representar

Observo o meu próprio insistir

Melancólico a rimar

Continuo a avançar

Verso no meu próprio persistir 

Realidade a magoar

Sigo a fantasiar

Exploro o meu próprio refletir

Alimento o imaginar

Vivo a viajar

Passageiro no meu próprio expandir

Enigmas no olhar

Horizontes a alcançar

Vagueio no meu próprio fluir 

Tenho a mim para revelar

A minha história para contemplar

E no meu próprio ser, continuo a evoluir


quarta-feira, setembro 11, 2024

Aquecer a alma a rimar


Ventania de Setembro

Fim do Verão a anunciar

Paixões a terminar

Amores levados pelo vento

Dias breves a passar

Noites sem acalentar 

O calor cai no esquecimento

Tarde fresca a desanimar

Desassossego no pensar

Os inquietos entregues ao tormento

A caneta para aconchegar

Frases cruas a ansiar

Poetas a purgar o seu lamento

Deixam a mágoa no versar

Aquecem a alma a rimar

Enganam o entardecer cinzento 

No papel a escrevinhar

Sobre tanto atormentar

Esquecem que o sol continua atento

Tem cores para pintar

Espíritos a animar

O Outono traz contentamento

Amarelos a brilhar

Castanhos a cantar 

A harmonia demora o seu tempo 

Há que saber escutar

As folhas a esvoaçar 

No vento ainda existe alento


domingo, setembro 08, 2024

S. Paio dos augados


Uma mulher passou por mim e deixou-me curioso. Conduzia, decidida, uma pick-up. Foi uma visão demasiado fugaz para conseguir perceber mais pormenores. Apenas o suficiente para ler a linguagem corporal. 

Não reparei na idade, nem tão pouco nos pormenores do rosto. Apenas, pela sua postura, assumi ser alguém pertencente a um meio onde a subsistência provém do trabalho agrícola. Seria bom, poder fazer-lhe paragem para lhe perguntar: "Quem és tu? De onde vens? Fala-me de ti! Eu sou este que tu vês. Tenho tanta coisa dentro de mim". 

É um pouco triste, após estes encontros breves, não poder abordar ninguém na rua dessa forma sem parecer bizarro, ou ser confundido com um tarado.

Os outros, passam com roupas compostas dentro dos seus carros. Vão esvaziando a vila a caminho do S. Paio dos augados. À noite vão à festa ver um artista pimba qualquer, a dançar, ou com um copo de cerveja na mão, enquanto celebram o fim do Verão. 

Os jovens, esses, desinibidos pelo álcool, fazem amor pela madrugada dentro. Despedem-se assim do fim da despreocupação das férias grandes. Na próxima semana começa a labuta para todos e com ela as responsabilidades adjacentes.

Depois, sobro eu. Uma criatura observadora destas lides da gente banal. Sigo na direção oposta em busca de outra festa, onde não exista música popular, ou falta de sobriedade. Amaldiçoo e abençoo esta minha índole solitária. Encaro mais um dia nesta busca perpétua sobre o significado de existir no meio dos outros. Perdido. Em busca de me encontrar. Embora, com uma certeza firme, disso nunca vir a acontecer.

Passou a mulher da pick-up e já vai longe. Passou o Zé Povinho para o arraial e deixei-os ir. As ruas ficaram nuas, sem o som dos automóveis a poluir o asfalto, nem passos apressados na calçada ao lado. A estrada está assim despida. Ao ponto de se poder caminhar sobre ela sem o perigo do atropelo. Por aí continuo esta minha reflexão ocasional e sigo o meu caminho sem rumo.


segunda-feira, agosto 26, 2024

A malta do campo compreende


Ai de vós pecadores!

Deixem o vosso desejo lamentar.

A época das colheitas está a chegar,

O milho está ser levado pelos lavradores!

Alheios ao vosso desgostar,

Carregam as espigas a sazonar,

Com elas abertas enchem os tratores.

Levam também o apaixonar!

Afetos que cresceram ao veranear,

Na sombra fresca dos campos verdes,

Onde os lábios se puderam beijar,

Tantos jovens aprenderam a amar,

Nestes milharais escondidos dos olhares...

As mãos no corpo a explorar,

Pediu a carne para se desnudar!

Ficaram as terras repletas de despudores!

Ouvem-se as máquinas a cortar.

O vosso refúgio apaixonado a ceifar.

Ternura e deleite transformados em dissabores.

Deixam histórias para contar.

Prazeres secretos para lembrar.

Com as espigas arrastam os vossos amores...

Não fiquem a choramingar.

Outro Verão há de voltar.

Um novo campo cultivado pelos mesmos labradores!